«Memória de Abril há 37 anos»

«De madrugada, o telefone acorda-me, estridente. Do outro lado, o sub-chefe de Redacção de “O Século” diz-me: «é melhor vestires-te e vires já para o jornal; parece que há por aí umas movimentações militares»... Estremunhado, dispenso o duche, visto-me, e avanço. Já no jornal, mandam-me para a Praça do Comércio. Ainda não há povo, apenas militares. Um homem de “cara fechada”, firme nas ordens, está no comando; venho a saber, pouco depois, que é de Santarém, Salgueiro Maia de seu nome. Outros oficiais, suponho, vão chegando e empunhando a arma, mesmo à civil. O dia nasce, ainda não há povo, mas começam a aproximar-se os primeiros curiosos, que os “cacilheiros” depositam no Cais das Colunas; outros vêm do interior da cidade. Está tudo calmo. Por mim, não sei como conter a emoção; onde ir buscar forças com que garantir a objectividade jornalística que me pedem. Um pouco mais tarde, as coisas aquecem: há forças militares na Rua do Arsenal; são fiéis ao governo, segreda-se. Salgueiro Maia avança com os seus homens para o princípio da rua. Há, agora, frente a frente, militares feitos com o passado e um capitão “com saudades do futuro”. Como é que vai ser? Morre tudo aqui? No passeio do lado do Tejo, mais ou menos a meio da Rua das Naus, estou na via das balas mas nem dou por isso. Alguém me diz que é um brigadeiro “reaça”, que não desarma, que quer mesmo ir para a luta. Não tenho forma de confirmar, mas percebo que se parlamenta. Finalmente, ao fim de um tempo que me parece infindável, os homens do regime rendem-se ou desistem, não sei bem. Começa ali, o “25 de Abril” sem sangue. Respiro fundo e resolvo acompanhar os militares a caminho do Carmo, Rua da Conceição acima. Agora já há povo por todo o lado, gente que sorri, gente que ri, que aplaude. Quinta-feira de festa. Enterrado o medo, nascerão amanhã as primeiras flores nos canos da G3, arma que eu, “passado á peluda” um mês antes, tão pouco estimava. Os soldados sobem a rua, ainda com algum cuidado, cosidos ás paredes. Diz-se que a GNR não se rende e vai dar luta, mas as pessoas fazem fila dos dois lados da via, indiferentes ao perigo; a sede de liberdade abre as bocas, há tanto tempo cerradas. Toda a gente sobe ao Carmo. Passo por um GNR de mauser ao ombro, perdido no meio de tudo; passamos todos; o espanto na cara dele dava um “boneco”, onde é que para o Alfredo Cunha? Já o perdi, foi á procura do “25 de Abril” do seu incontornável talento; aquele é repórter até aos dentes, penso. No Largo do Carmo, há uma multidão que cresce e se junta. As ruínas, as árvores, o largo, a rua, está tudo pejado de gente. Ouve-se que Marcelo Caetano está lá dentro, com alguns ministros; que um dos altos dignatários chora de medo; mas ninguém se rende. Seja lá como for — mais tarde há-de chegar António de Spínola, para o cair formal do pano sob o regime que durante quarenta e oito anos fez perder Portugal e amordaçou os portugueses — é claro para todos que o amanhã começou. Um cidadão aproveita o impasse para ler o “Diário de Notícias”; manchete atrevida para a ordem vigente ontem, mas demasiado temerosa para o dia que vivemos: “Eclodiu um movimento militar”, titula o jornal. Podia titular: Re-Nasce Portugal. Naquele dia, quinta-feira, 25 de Abril de 1974, esta afirmação era uma verdade florida, aplaudida. Os homens destinados a fazer a guerra tinham, de madrugada, na aparente frieza dos tanques, no calor do gelado metal das espingardas, devolvido um país á História, e entregue ao povo o respeito por si, que lhe fora roubado. É por isso que este texto não tem rigor científico, sociológico, histórico, jornalístico. É, apenas e ainda, o texto de uma emoção que me ficou cá dentro e que constitui parte do mais valioso património da minha vida vivida; está-se nas tintas para a objectividade. Uns dias antes daquela manhã como nenhuma outra, o Zeca tinha-me dito no Coliseu: “Eh, Pá! Já nem os filhos da puta dos Pides salvam os gajos”. Tinha razão. Em 25 de Abril de 1974, como, dias depois, no primeiro 1 de Maio em Liberdade, Lisboa também soube ser Grandola. Que seja capaz de não perder, nunca, essa força. Que sejamos capazes».
Mário Contumélias. Facebook.

P.S. - Não podia deixar de publicar este magnifico sentir. Obrigada, Mário.

Comentários

Anónimo disse…
adorei o texto. Verdadeiramente emocionante!
gelo

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